Por Antonio Paulo Pitanguy Müller, médico residente em cirurgia plástica
Eu sempre fui muito próximo ao meu avô. Lembro-me dos fins de semana que íamos à ilha (foto 1), preferia constantemente conversar com ele a brincar com meu primo.
Ele me incentivava a manter a cabeça aberta e a ter curiosidade para diversos assuntos. A cultura era parte de sua vida e algo muito natural para ele; a simplicidade foi uma de suas principais qualidades. Tivemos um estilo de vida muito peculiar, mas tudo parecia normal. Olhando para trás agora, eu vejo o quão sortudo eu fui por conseguir aproveitar a companhia dele em vários lugares diferentes. Amava almoçar com ele em sua clínica. Tinha uma cobertura com um aquário e pássaros. Tinha um auditório que transmitia cirurgias ao vivo, onde colegas e residentes assistiam e isso era fascinante pra mim.
Durante minhas férias escolares, nós costumávamos ir para a Suíça esquiar. Tenho boas memórias com ele; às vezes ele me levava ao cinema e depois íamos comer uma pizza. Ele tinha a habilidade de fazer qualquer um se sentir especial, brincando na neve e esquiando com a família.
Quando comecei a faculdade de medicina, ele estava feliz, mas me deu o senso da responsabilidade. Disse-me que antes de me tornar um médico eu deveria viver intensamente cada passo. “Não ponha a carroça na frente dos bois”, ele me dizia. Pois, em sua opinião, o mundo estava cheio de especialistas, mas nenhum com interesse verdadeiro no ser humano. Encorajava-me a estudar e quando saímos para jantar em época de provas, ele me ajudava com a matéria da prova. Lembro-me de um dia em que matei aula para ir a sua clínica ver operações. Quando ele me viu, perguntou: “O que você está fazendo aqui? Ainda não é o momento de observar uma cirurgia plástica, você deveria estar estudando.”
Comecei a fazer plantão à noite em um dos principais hospitais públicos do Rio de Janeiro quando estava no quarto ano de medicina. Não queria que as pessoas soubessem que eu era neto dele, porque o nome dele é bem famoso no Brasil. Lembro-me de uma paciente que chegou com um corte no rosto para saturar e ela me disse sem saber quem eu era: “Por favor, faça o seu melhor. Quero que pareça que foi o Pitanguy que fez.” A experiência no hospital público foi muito importante para mim, me deu discernimento sobre a gravidade da violência urbana. Nós não dormíamos, mas era muito emocionante e eu amava contar as histórias para ele. Era o assunto que mais gostava: contar-me sobre suas experiências e aventuras no começo de carreira, quando trabalhava na emergência atendendo aos chamados das favelas.
Quando me formei, decidi que deveria fazer minha residência em cirurgia geral em um hospital do subúrbio do Rio, com muitas chamadas de emergência e traumas. Ele me encorajou a fazer isso e foi umas das experiências mais importantes da minha vida. Os cirurgiões que trabalhavam lá eram verdadeiros heróis, davam o melhor de si no que mais parecia um cenário de guerra, recebendo vítimas de tiroteios quase todos os dias em péssimas condições de materiais e infraestrutura. Aprendi bastante lá, passei duas vésperas de natal trabalhando na emergência ao invés de aproveitar com a minha família na Europa. Ele estava orgulhoso, mas nunca demonstrou isso. Sempre me dizia para ser humilde e tomar consciência da hierarquia que havia e do longo caminho que eu tinha à frente.
Ele criou uma escola de cirurgia plástica no início dos anos 60. E me disse que se eu quisesse entrar em seu treinamento, tinha que estudar muito e fazer um bom teste, porque era uma instituição meritocrática e não uma empresa familiar. Estava feliz em me aceitar pelo mérito (foto 3). Eu sabia que ele não viveria para sempre, então, nos últimos três anos fiz um esforço para tentar passar o máximo de tempo possível com ele. Eu tive o privilégio de ir a diferentes reuniões de cirurgia plástica com ele em muitos lugares. No Brasil, todo mundo pedia para tirar fotos com ele, e por conta de sua idade, às vezes, me preocupava. Uma vez perguntei se ele não estava cansado de tirar tantas fotos e ele disse que ele não era uma estrela do rock, e sim um médico e ficava muito honrado de ser reconhecido pelo seu trabalho.
Tive a chance de ir para os Estados Unidos e observar um dos melhores cirurgiões plásticos do mundo e quando voltei, conversei com meu avô e tive a clara percepção de que ele não sabia que era visto como modelo, o quanto influenciava outros jovens cirurgiões. A curiosidade era o que o mantinha; era curioso basicamente sobre tudo e gostava de citar o escritor brasileiro Guimarães Rosa, “mestre não é aquele que sempre ensina, mas sim aquele que sempre aprende.” Nesse sentido, me perguntou sobre as mídias sócias, aplicativos de iPhone, etc. Nos últimos meses, eu realmente gostava de assistir filmes com ele depois do jantar e sempre tinha várias opções, porque frequentemente ele dizia “não, esse é muito chato” e eu tinha que mudar de filme. A casa dele no Rio ficava perto de uma floresta, nos almoços de domingo era normal recebermos visitas de macacos no jardim, ele me pedia para alimentá-los. “Dê a banana para o pequenininho. Esse aqui está muito gordo comendo tudo.” Era um amante da natureza antes mesmo da ecologia virar moda. E durante mais de 30 anos manteve sua ilha ligada ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente com muitas espécies de animais.
Fiz 30 anos uma semana antes de ele falecer. Ele estava fazendo hemodiálise. No dia seguinte, levei o bolo de aniversário e um champanhe para sua casa. Fizemos um brinde, ele me desejou sucesso e me senti triste por conta de sua fragilidade. Ele citou uma passagem da Bíblia, quando o rei Davi estava morrendo e pediu para chamar seu filho que ainda era muito jovem e me disse em latim: “Confortare pesto vir”, que significa: “Tenha coragem, seja um homem” (foto 4). Sempre vou guardar a memória de sua força já no final de sua vida, insistindo em aceitar carregar a Tocha Olímpica um dia antes de falecer e de nunca reclamar de nada. Manteve seu senso de humor até o fim e viveu uma vida plena e produtiva. O trabalho ocupava a maior parte do seu tempo, mas sei que não se arrependeu disso; era apaixonado pela sua especialidade e ajudou na sua propagação pelo Brasil.
Fonte: https://prsresidentchronicles.wordpress.com/2016/12/02/take-courage-be-a-man/